“Primeiro estranha-se, depois entranha-se.”
O teatro é adaptável. Desde as dramaturgias até concepções técnicas, como cenários e iluminações. Ele é possível em qualquer espaço, desde que haja disposição para isto. Mas o que fazer quando o contraste é extremo, levando em consideração as bases do fazer teatral na essência de determinado grupo? É comum a adaptação de espetáculos de caixa para a rua, mas e quando acontece o inverso? Pode-se manter o valor de uma peça originalmente feita para/na rua trazendo-a para dentro de espaços fechados? É importante analisar as duas realidades, destacando aqui que a essência do grupo é sumariamente o teatro de rua.
A rua observa e absorve tudo. É um ambiente de respostas extremamente rápidas, sejam elas estruturais, espaciais, climáticas. Um lugar sem paredes no qual o espectador é também atuante e o leque de observações se abre em infinitas possibilidades. A rua é local de caos, locaos, no qual se desenrolam contextos além do que (a)parece na cena. Arrisco-me a dizer que a mise-en-scéne é tão ou mais rica do que se apresenta num primeiro plano. O ator da rua deve ser, antes de tudo, um ator social (como se já não fôssemos, em qualquer instância...), mas aquele cuja presença não é diferente do contexto, ele é mais um, disputando espaço e atenção com outras pessoas, sons e o próprio espaço e jamais ignorando tudo isto; muitas vezes assumindo jogos com eles. Talvez esta seja a graça: a rua é imprevisível. Já saímos de casa sem saber o que iremos encontrar - e se iremos voltar. Se dentro de casa ou no conforto previsível da caixa preta temos um público à nossa disposição, fora dela, é como se corrêssemos atrás do público, pois ele está em todo lugar, desde uma banca de jornais até uma boca de fumo ou pedindo esmola nos sinais. A cada um desses oferecemos nossa arte, e cada um absorve/observa de um jeito. Estar na rua não é simplesmente alcançar um público, mas fazer o público ser alcançado e alçado de várias formas, entre elas, a social. Ana Carneiro afirma que ‘o teatro de rua ocupa uma posição de marginalidade que determina que, para levar a cabo sua tarefa, os integrantes dos grupos de rua devem realizar grandes esforços, tanto no que se refere ao mundo espiritual quanto ao mundo material; devem possuir uma potente motivação ideológica.’ Há que se considerar todas estas motivações como partes de um contexto maior, no qual o ator busca seu público, o qual também é atuante da realidade, de cenas que se desdobram muito além do espaço de um palco.
O outro extremo, a caixa preta, traz uma ressignificação de vários signos do espetáculo. Inicialmente vem o choque de estar em um local sem tantas interferências externas (interferências aqui substituídas grosseiramente por fotos desnecessárias e o mau uso de celulares). Não existem intervenções climáticas, a iluminação é técnica. Não há a sonoridade da rua nem os outros atores que vivem ali e dela fazem seu palco. É o ‘conforto desconfortável’ e por esta razão, um espaço muito mais previsível. Dentro do espaço teatro, inicialmente não buscamos o público; ele vem até nós com atenção redobrada, pois está ali com um objetivo. Ele não é alheio ao assistir. Somos nós e o público. As respostas já não são tão rápidas como ao ar livre. E há também o nosso estranhamento àquele espaço desconhecido, desde a sala de ensaio. Não tínhamos salas, sequer paredes. Não tínhamos muros atravessando nossa visão da verdade cênica. Agora temos a quarta parede Brechtiana, a quinta, a sexta... Inúmeras paredes. Na caixa, temos um teto que nos impede de enxergar o céu real. Mas o céu também existe ali dentro, junto com os artifícios da iluminação que dão uma espécie de encanto o qual ocorre de outra forma na rua. Se outrora o espaço era mais livre, se adaptava ao público, na caixa obedecemos a uma padronização de cadeiras, organizando-as. Na execução de trilhas e sonoplastias há maiores recursos de ordem técnica. Ou seja, o ambiente como um todo desenha um espetáculo muito diferente do qual estamos acostumados – e o público também, por tratar-se de um grupo que tem sua essência na rua. Até o caos que provém de fora necessita ser ‘controlado’, desde os exercícios de reconhecimento do espaço, de seus detalhes, do que causa maior impacto até a preparação vocal e corporal. Corpo e voz trazem das ruas uma energia superdimensionada que precisa de nivelada ao espaço da caixa. É necessário dosar esta carga até que se entranhe por completo o espaço e todos os seus aparatos. Leva tempo e sacrifício, mas voltando ao início deste texto, repito o quanto o teatro é adaptável, desde que haja a disposição necessária.
Uma vez entranhados e envolvidos, tivemos recentemente a interessante experiência da observação e agora vivemos este desenrolar do teatro da caixa. Longe da casa que é a rua, tomamos um novo espaço, fazendo dele nosso habitat. Na caixa preta, não somos os pássaros soltos, estamos dentro da gaiola. Dentro dela, estão todas as entidades, máscaras e energias que se conceberam lá fora, mas que estão presentes e inteiras no aqui. E mesmo observando de dentro, em um espaço menor, continuamos absorvendo tudo.
Karimme Silva (Pesquisadora, experimentadora, ‘dire-triz’ e articuladora ritualística na Trupe Perifeéricos)